segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Memorial de alfabetização: Uma história sem fim

A verdade é que eu não me lembro do tempo em que as palavras não faziam sentido. Lembro-me de saber, e ponto. Mamãe era professora, vivia carregando livros, provas e trabalhos. Nunca vi o papai lendo um livro, mas ele assinava os gibis da Turma da Mônica e fazia questão que minha irmã e eu lêssemos, mesmo antes de eu aprender as palavras. Dizem que as crianças lêem o mundo antes de ler as palavras, não é? Contam que foi assim que aprendi a ler, antes de escrever, e tendo vivido menos primaveras do que a quantidade de dedos da minha mão de menina pequenina.
Minha irmã é quatro anos mais velha que eu, e era com ela que eu travava minhas batalhas. Ela era o orgulho do papai, porque lia muito e muito rápido. Como podia ser isso, se eu era a menininha do papai? Se era ler que eu precisava para ter o papai para mim, ah eu leria! E foi assim, meio que por ciúmes, que eu comecei a pegar gosto pela leitura. Os tais gibis, livros da biblioteca municipal de Santo André – que eu visitava todas as semanas com a vovó – e da biblioteca da escola – outra visita certa, todas as semanas.
Lembro-me de um livro estranho, com uma história escura, meio úmida, um castelo assombrado e um pouco de medo. Até hoje não sei que livro é esse. Lembro de casas que fugiam de casa, de colas que vazavam na gaveta e grudavam tudo. Lembro de galinhas que queriam janela em casa e de lesmas que estavam sempre indo. E em meio a camaleões que mudavam de cor, wallys que escondiam e perdiam coisas, flicts, estranhos planetinhas azuis, Manecos, canecos e chapéus de funil eu conheci os mundos.
Criei caso mesmo foi com as travessuras de uma certa menina de nariz arrebitado. Pegava o livro, pintava as imagens, lia os primeiros capítulos. Nunca voltava do Reino das Águas Claras. Coitado do livro, criou até orelhas de tantas abobrinhas que eu falava sobre ele. Até que um dia mamãe comprou um outro livro. Maior, mais colorido e com cara de coisa de criança. Devorei a história e fiz reinações junto com a turma do Sítio. Até hoje cheiro de livro é como pó de pirlimpimpim. É só respirar e viajar por um mundo de sonhos, como que ouvindo as histórias contadas por uma velha negra.
Virei rato de biblioteca. E tornou-se um prejuízo para o papai me levar em livrarias. Eu ganhava meu presente de aniversário quando começava o ano e a mamãe ia visitar as editoras para escolher material para dar as suas aulas. Sempre saíamos de lá com muitos, muitos livros paradidáticos. Aliás, foi nessa época que eu aprendi que livros didáticos não estão com nada! Eu gosto mesmo é dos paradidáticos! Mesmo que eu não soubesse o que significavam essas palavras...
Ai eu conheci dois Pedros. Um deles era o Pedro da classe, colega de leitura, com quem eu competia para saber quem lia mais livros. Era ele que me passava as melhores indicações de livros pra ler, muito mais que a coitada da professora que não sabia o que era legal. Foi ele que me apresentou um outro Pedro. Pedro Bandeira. Tornei-me amiga íntima de Calú, Miguel, Chumbinho, Crânio e Magri. Virei um Kara! Droga de tempo que passava rápido, droga de livro que acabava, droga de série que não continuava... Depois conheci o Leo, o Gino e a Ângela. Gino foi meu primeiro amigo com deficiência. Marcos Rey tinha livros legais, mistérios, mortes e cadáveres. Mas quando li Mariana de um, fiquei com a Marca de uma lágrima gravada no coração.
Certa vez enviei cartas, tanto para um autor quanto para o outro. Pouco depois recebi um bilhete da viúva de Marcos Rey, me contando sobre sua morte e me incentivando a escrever. E eu que pensava que os escritores viviam para sempre... (Não vivem?!).
Mas como em todo conto de fadas há uma bruxa, esse não poderia ser diferente. Lembro-me até hoje de Maria do Socorro, professora de língua portuguesa da sexta série. Eu contei a ela que havia lido O Mundo de Sofia. Ela não acreditou. Disse que uma menina da minha idade não sabia ler um livro daqueles, não entenderia nada, não podia ler. Pouco tempo depois escrevi uma carta à coordenação da escola reivindicando um passeio ao Hopi Hari. Essa professora duvidou novamente de mim e disse que eu não poderia ter escrito uma carta tão boa daquelas sozinha. Perto dessa bruxa, a dona da casa feita de doces de João e Maria parecia até ser boazinha.
Cresci. Li Agatha Christie, as histórias de Sherlock Holmes, Luiz Fernando Veríssimo, Eça de Queiros, Machado de Assis... só não li Paulo Coelho. Tomei gosto pela poesia, Fernando Pessoa, Vinicius de Morais, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Drummond...
E foi lendo tanto, que li a história de uma professora muito maluquinha. Tornei-me professora. Tornei-me uma eterna aprendiz da literatura. Hoje não leio tanto quanto gostaria, uma vez que os livros que me fazem brigar e sonhar com a realidade ocupam meu tempo e não me deixam ler os que me levam para a fantasia. Que saudades da aurora da minha vida, da minha infância querida. Que saudades dos barcos de papel que eu soltava na enxurrada. Mas ainda sou pequena, muito eu ainda não sei, mas sei que gosto do mundo onde eu cheguei.

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